A lanchinha foi perdendo velocidade, até parar por completo. À exceção do
piloto, descemos todos meio destrambelhados. Éramos um paulista, uma carioca, um casal de mineiros e outro casal, que eu não lembro mais de onde tinha vindo.
O corpo grande e cinzento do boto estava ali, jogado na areia. Olhos vidrados e boca aberta, deixando à mostra os dentes de dinossauro. Não parecia inchado, nem estava rodeado por urubus. Tinha morrido há pouco tempo, provavelmente. Ficamos observando em silêncio, numa cena que era mistura de velório e excursão turística.
Mais tarde, contamos isso para o Bata. Depois de ouvir, o velho índio coçou o queixo de barba rala e disse que não ia mais pescar naquele dia. “Tem que saber reconhecer o sinal que o rio manda. Se ele, que vive na água, não deu conta de nadar, imagina a gente”.
A carioca se despediu de nós e seguiu outro caminho, com um guia diferente. Disse que ia passar a noite lá, tinha um lugar bom pra entrar na água e, quem sabe, até pescar.
Voltamos em segurança, na mesma lanchinha. Da carioca, não fiquei sabendo.
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Eu tenho tentado escrever, mas o barulho tem atrapalhado. Eu abro o blog e fico admirado com o silêncio que encontro aqui. Esse fundo preto é a coisa mais bonita, porque silenciosa.
Aqui fora as pessoas gritam. Ligam aparelhos de som, motores, telefones, se juntam e começam a gritar.
É enlouquecedor.
O barulho do mundo me faz querer chorar.
Há vozes que fazem de mim uma pessoa violenta. Mas eu não posso ser violento. Ninguém merece a minha violência, daí eu guardo. E sinto vontade de chorar, porque a violência é sempre um sintoma da fragilidade da existência. A fragilidade da fome, do medo, do desespero. Um leão bem alimentado, por exemplo, é como um gato grande. Gosta de carinho, de dormir sossegado. Um leão com fome (e a fome é uma fragilidade) é uma criatura violenta.
Minha fragilidade é isso, o barulho. Quero ser violento e não posso. Mas quero chorar e também não posso, aí fico nesse impasse. Guardo a fragilidade como violência, a violência como choro e o choro como um silêncio resignado e inútil. Ninguém quer fazer silêncio comigo.
Eu tento escrever e me distrair, mas os gritos são mais fortes. As frases acabam saindo curtas, quase não há espaços para se pensar parágrafos. Os sons chegam como machadadas no meu crânio, como fazer acupuntura nos olhos.
Eu me sinto emburrecer por causa do barulho, porque posso ouvir e entender o que está sendo dito. A tristeza é essa coisa burra, das mais burras que nós, que somos animais sociais, podemos produzir. Mas são exatamente essas associações que fazemos, como se cada um fosse um animal de uma espécie diferente, que produz o barulho, a burrice e a tristeza. Não há uma solução.
Sigo triste, burro e escondendo minha violência (e isso gera essa escrita pouco literária e pouco condizente com meus propósitos no blog). Não sou jovem, mas talvez ainda falte algum tempo pra conseguir transformar essas coisas em poesia.
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De repente os anjos tinham ido embora, deixando pra trás as trombetas. Por isso, tivemos chá.
De repente os anjos tinham ido embora, deixando pra trás as trombetas, mas levando todo o nosso tempo. Por isso, os chás se tornaram impossíveis.
De repente os anjos tinham ido embora, levando as trombetas para o chá, nos deixando apenas amargura e espadas e tudo se tornou impossível.
De repente os anjos nos decapitaram e fugiram, levando nosso chá de trombeta, deixando pelo chão o nosso sangue. Por isso foram tão bem irrigadas as sementes de revolta.
Por isso nos revoltamos e roubamos as espadas dos anjos, soamos suas trombetas, ficamos loucos e nos matamos, cantando a canção da felicidade impossível. Mas, de repente, os anjos não estavam nem aí.
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O leitor pede um livro escrito em inglês. Lembrei que tínhamos uma biografia do Bill Clinton, doada há algum tempo, pegando poeira e pesando a estante. Pensei “É chegado o momento”. Passei a mão no calhamaço e com empolgação e naturalidade, entreguei pro leitor dizendo “Toma aqui essa biografia do OBAMA!”
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Uma mulher que fala muito e dá informações demais. Conta que tem problemas mentais. Elogia a biblioteca. Quando começo a mostrar as estantes, se abraça a um livro da Danielle Steel, muito feliz. Eu digo a ela para fazer o cadastro, explico que não há nenhuma taxa, mas ela prefere não fazer nada por agora. “Vou voltar um dia em que não estiver tão bêbada”. Se despede e vai embora.
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A Marilyn tem vindo sempre. Eu preciso olhar muito pra ela, para entender o que ela diz, porque ela conversa muito rápido. Me chama de John Lennon. Pede dinheiro e eu nunca dou. Pede os livros do Paulo Coelho, que eu separo. Ela conversa muito, com os livros na mão. Quando eu me afasto, para que ela possa ler, sou chamado de volta. Ela me manda guardar os livros, ora porque esqueceu os óculos, ora porque está atrasada para um compromisso. Samuel, que é mais paciente, se oferece pra ler. O resultado disso é que ela nunca entra, quando ele está.
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O impulso, sabe? A terrível comichão que move as pessoas na direção da linguagem. Pro ator, a mentira e a política, pro músico, a música, pros bêbados, ansiosos, deprimidos e covardes, o texto.
Não importa que seja só a repetição. Bater os dedos no teclado, arrastar um lápis pelo papel, rabiscar uma parede com bosta. A escrita vem dessa neurose cruel pela letra.
Depois há as estruturas, planos de trabalho, o desejo de encher o cu de dinheiro vendendo os direitos do livro pro cinema, a descoberta terrível de que todos os textos são muito ruins quando escritos pela primeira vez (tudo precisa de revisão, de reescrita). E, claro, vai dar tudo errado, porque sucesso tem muito pouco a ver com literatura. Ou com felicidade, se a gente para pra pensar direitinho.
Mas o começo é a prisão neurótica de empilhar as palavras, isso que a gente finge de tempos em tempos que não é importante, necessário, que é perfeitamente contornável, mas que mora no fundo da sua cabeça e vive de fazer exigências e ameaças.
Esse desejo estabelece o pacto: quer ficar de pau duro? Quer dar conta do trabalho? Dormir oito horas por noite? Abraçar os amigos sem o impulso de destroçá-los? Então escreve. Não pense na conjugação do imperativo, só escreve, caralho. Depois o revisor resolve se você troca a palavra ou mantém o desvio da norma como liberdade poética. Depois. Agora você tem uma tarefa urgente. Urgente como coçar as costas, estralar os dedos, espirrar. Procura um papel, abre o editor de texto seu celular e começa aí. “Quando acordou, o dinossauro havia cometido suicídio”.
O problema não é viver com esse mal. O problema é saber como escrever diálogos, trocar os parágrafos e, principalmente, terminar sem usar corte seco.
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Perdi o acesso a meu blog antigo, o Bom Dia, Mundo Cruel!, porque sou péssimo com senhas.
Até então estava tudo bem, pois escrevo pouco, sou lido por ninguém e vinha tentando outras coisas que me mantiveram muito próximo da literatura, mas muito distante da escrita.
No entanto, tenho sentido falta de um campo de treino, um espaço para brincar com enredos, palavras, um laboratório literário (Como o Nerito já havia chamado o BDMC!, antes).
Não tenho muita certeza do que vai acontecer com essa caixa de letras, mas espero conseguir continuar vindo aqui, fazer minha quase literatura.